CAÇADOR DE DIABOS

De tanto olhar para o céu, procurando nuvens de chuva, Sinout teve paralisia na coluna vertebral desde o cóccix até o pescoço e nunca mais conseguiu olhar para a terra. Ficou com o pescoço duro feito pau. Assim, deixou de ver o cadáver de Das Dores que apodrecia a seus pés. Isaurinha Bunda de Anjo, em uma rara visita à fazenda, procurando Nica Calungu, passou com os peitos quase roçando o queixo de Sinout e ele não conseguiu ver. Conferir a bunda dela, nem pensar. Tentou usar a mão boba, mas foi inútil. Ficou andando atrás de Isaurinha feito aqueles bonecos de Olinda em vão. Mais tarde, não vendo os buracos abertos no solo por Nica, quando cavava poços procurando água para irrigar a terra, arrastou uma velha cadeira de balanço até o terreiro da fazenda, sentou-se nela e ficou observando o céu. A cadeira deslizou, caiu em um dos inúmeros buracos e de lá ele nunca mais saiu.
Alguns dias após o deslizamento da cadeira, sem esperança de ser salvo por alguém, ele suspirou, sorriu tristemente e disse: “aprisionado neste buraco, sinto o descortinar de um véu bem diante dos meus olhos. Agora sou livre. Daqui de dentro vejo tudo de uma maneira muito simples e clara. Não sei julgar se é a maneira mais correta de ver as coisas, mas é o olhar mais honesto que eu posso ter sobre a vida. Não sei o porquê disso, mas temos uma estranha mania de honestidade quando sentimos o precipitar da última hora. Agora enxergo o mundo humano diferente e acredito que ele é exatamente como eu acho que é: um teatro infinitamente menos qualificado do que aquilo que imaginamos ser, cujas peças são encenadas por ingênuos que acreditam que são algo maior e diferente das coisas que não valem nada. Nosso mundo é um circo e sua lona, suas madeiras, pregos, martelos, braços, pernas, bocas e memória não resistem ao tempo. Em breve, nós e nossa trajetória de vida seremos ainda esse circo, só que vazio, empoeirado e abandonado num deserto qualquer. Imperadores, reis, presidentes, ditadores e todos os poderosos deste mundo experimentaram momentos de abuso e glória absolutos em picadeiros sob lonas suntuosas ou esfarrapadas. Podres diabos! Arrogantes que se tornaram tolos impotentes no final de suas vidas! Eles perderam porque daqui ninguém sai de pé! Hoje quase nada do que eles foram restou, senão apenas poeira de história. E nós que vivemos o agora, quando viraremos apenas poeira de história? Quando é que as nossas biografias não significarão mais nada para ninguém? Nossos antepassados tiveram seus momentos de alegria e dor nas arquibancadas da vida esquecidas pelo tempo. E hoje, o que restou disso? O que restou da coragem, um dia exaltada, ou da covardia, um dia repudiada, deles? O que restou do orgulho, do preconceito ou do rancor? O que restou ou o que restará da aventura humana, com o passar do tempo, senão apenas os trapos da lona do circo soprados pelos ventos de um deserto quente e inóspito que aos poucos é coberto pela areia? A vida humana é inegavelmente um nada no tempo. E tolo é aquele que tenta pregá-la às paredes do universo, numa tentativa louca de eternizá-la, agindo como idiotas que usam pregos e martelos no deserto para fixar areia. A vida humana é inegavelmente uma peça cujas cenas são representadas por tolos num teatro menos qualificado: num circo. Eu vejo tudo isso daqui de dentro com o corpo aprisionado, mas com a mente livre. Sinto o descortinar de um véu bem diante dos meus olhos. Agora sou livre. Eu sou livre”.

Trecho do romance “CAÇADOR DE DIABOS” Vanraz

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